alheios



um louco desce de mim pelos dedos
e quase com sangue, nu e quase sábio
desce porque se viu e não quer morrer de si
como quem amarra noites num vidro de acetona
assim um louco desce de mim pelos dedos
enquanto peso minhas dívidas internas
afago-o feito mãe cruel que abandona
um filho louco quase sábio e nu ao mundo
um louco assim desce de mim pelos dedos

Nivaldete Ferreira, Trapézio e outros movimentos, 1994

***

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen

***

Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.


Vinícius de Moraes

***

Quem permitiu
que me amasse
sem receios?
sou mundana
insana e
tenho incertezas
até a terceira geração

Sou terra molhada pela chuva
quando forte o sol. Seco.

Adélia Danielli, Por Cada Uma, 2011.

*** 

Inverno
A solidão é como chuva – Rilke

Lençóis de taco saem dos baús
Paramentos das noites hibernais,
Cheirosos a tempo
Lavado em sabão de soda

Inverno sobre as telhas
No chão lentipinga uma goteira:

Conta-gota
Dos remédios da solidão

Nivaldete Ferreira, Sertania, 1979.

***

Quando queimei as pontes,
O sagrado se espalhou como pólen.
Penetrou flores intocáveis
(tulipa entre entulhos)
E pequenas rachaduras
Nos cacos de vidro dos muros.
Altiva, eu nada quis reter.
Quando o lodo secou
(crosta na pele)
A fauna noturna sugou minha seiva,
Meus anticorpos.
Censurada e seca, desaprendi a chorar.
Em cólera, perguntei:
Deus, por onde me espia
Para eu ultrapassar essa fresta?

Isabella Maia, Por cada uma, 2011.

***


geografia

teus pés de solos áridos
descobrem minha relva úmida

tuas mãos de cactos crassos
adentram minha selva macia

e chovemos

um gozo de ser tão

Marina Rabelo, Por cada uma, 2011.

***

Não me lembro bem quando
esta ruga plantou-se
entre o nariz e a testa
o olho esquerdo e o direito

horizontal golpe
que divide a face
tanto para cima
quanto para baixo

ao nariz restou
espalhar-se para os lados
antes de cair de vez
no oceano da boca
o que daria muito o que falar

auto-retrato sem direito a retoque
Barcelona 28.08.2002

Diva Cunha, Armadilha de vidro, 2004.

***

de sagitário

pela minha natureza descuidada
desfaço a barra da minha saia
tomo café e borro o batom.
no salto, fico atônita
pés descalços, fico jovem

mas uso a saia o borro e o batom borrado

Helena Leão

***

rosnar ou pelos trilhos

como se abandonado
fosse menos que traído

e uma gastura no estômago
impossibilitando o corpo a se mover

entre os trilhos
entre os cacos
entre seus olhos abertos
e dentro dos meus.
umas mãos nuas
acho que eram tuas
dançando em mim.

Thiago Medeiros

***

ali mente
mente ali
alimente me
ali
mente
me

me alimente.

Thiago Medeiros 

***

Aquela Senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as arvores fazem.

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a natureza.

Alberto Caeiro, Poemas de Alberto Caeiro: obra poética II, 2006. 


***

quem não sente dor
dilacera língua
perde dedos
e dentes
fica em pedaços
anestesiado
num corpo-nada.

quero minha dor.

Sinhá, Devolva meu lado de dentro, 2012. 

*** 

Deixa que eu feche o anel
em redor do teu pescoço

Com as minhas longas
pernas
e a sombra do teu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

Nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

Maria Teresa Horta, Poesia reunida, 2009.
 
                                                                              ***

Sou um escândalo.
A poesia que aguente
a mim
e a meus versos
                 vândalos
                 de seda
                 e espanto.

Ser
     tão fera
não me inquieta.
Eis-me em todos os oceanos
doando o que me é vão
domando meu ópio:
                      a solidão.

Marize Castro, Marrons crepons marfins, 1984.

*** 

A teus pés
Palavra
nada tudo sou

Acovardo-me
Largo o remo

Sou tua escrava
Sirvo-te do bom e do melhor

Lustro o cálice em que bebes
Resplandeço quando me feres

Marize Castro, Rito, 1993. 

***


Minha senhora de mim

Comigo me dasavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me dasavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito


Maria Teresa Horta, Minha senhora de mim, 2009. 

***

Não cadeira

Não cadeira: poial
Que com meus dedos
Em pedra teci.
Senta, mas principalmente
Entra.
E se algo houver que nos separe
Será este papel: rasga-o,
Cava-lhe a porta e entra.
E se algo ainda houver que te impeça,
Há de ser o poema: ele é a porta.


Nivaldete Ferreira, Sertania, 1979. 

***
 
Através do Teu coração
Passou um barco
Que não pára de seguir
Sem ti o seu caminho

Sophia de Mello Breyner Andressen.

 ***

Cidadezinha qualquer

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia, 1930. 

***

Pranto para comover Jonathan

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

Adélia Prado, O pelicano, 1987.  

***

Para pôr paz

libélulas avoam danças
aranhas cospem tranças;
morcegos ralham noites
ursos linguam potes;
raposas agalinham-se
ondas engolfinham-se;
carochinha avoa voa
preguiça dorme à toa;
toupeiras entunam-se
grilos estrelam-se;
noites adescaem
estrelas agrilam-se
eu libelulizo-me.

Ondjaki, Há prendisajens com o xão: o segredo húmido da lesma e outras descoisas, 2011.


*** 

Resposta ao Anjo Gabriel

Agora que aprendeste a incendiar-me
e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua 
   

Iracema Macedo, Lances de dardos, 2000.

***

Dama vestida de mim

Senhora minha
raiz
resguardada no seu jeito

Dama vestida de mim

Fechada nos seus poemas
a fiar o meu enjeite  

Maria Teresa Horta, Poesia reunida, 2009.

***

A lição de pintura

Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além do quadro

que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva à outra e a muitas outras.

João Cabral de Melo Neto, Poesia crítica: antologia, 1982.

***


II

Você me dá um poema
eu te dou meus ouvidos
olhos com que te olho
entre assustada e temerosa
pela absoluta rigidez do teu braço

quem te garante, senhor,
que o canto dos pássaros
não seja pauta arrancada do fundo da garganta
flor a crescer naturalmente na manhã?

cedo ou tarde acertaremos as contas
você e seus engenhos de navalha
eu e minha trouxa de pertences
mundo que do nada se levanta
como asa, passa
como canto, canta

Diva Cunha, Resina, 2009.
 ***

Cântico negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio 

***

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